segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Os paradigmas, os transportes urbanos e a Tarifa Zero

Por Lúcio Gregori
Reproduzido do saite Desacato

Os paradigmas são , em geral de difícil mudança. Na Ciência em que pese essa dificuldade, existe todo o aparato da demonstração matemática e empírica que garante a mudança. Mesmo assim, são clássicos os exemplos de Copérnico, Galileu e outros, vítimas à sua época de preconceitos, chistes e mesmo condenação moral ou religiosa.Quem hoje teria condições de defender o geocentrismo ou a invariância do tempo?

Como disse Eric Hobsbaun, historiador com seu humor tipicamente inglês em um dos livros mais recentes: A humanidade é muito conservadora. Afinal o que restou de concreto da sanguinária Revolução Francesa não foram propriamente a liberdade, a igualdade e a fraternidade, mas... a adoção no ocidente do sistema métrico decimal!

Da Revolução russa de 1917, não o comunismo mas...a adoção pelos russos, do calendário Gregoriano ao invés do Juliano!

Eu acrescentaria sendo apenas irreverente e parafraseando Shakespeare; muito barulho por quase nada!

Que dizer então dos paradigmas sócio-econômicos? São de mudança muito mais difícil. Não digo a mudança geral da sociedade mas de pequenas mudanças , digamos, setoriais.

É assim com os transporte urbanos.O paradigma existente diz que o transporte urbano é serviço público, mas é tarifado.De todos os serviços públicos municipais, o único que é pago no ato de sua utilização é o serviço de transportes urbanos.

De resto, uma contradição: se o serviço é público, não pode ser pago quando de seu uso. Ele é privado para aqueles que fazem tal pagamento!

A ninguém, pelo menos por enquanto, passa pela cabeça pagar matrícula e mensalidade na escola pública ou pagar procedimentos médicos ambulatoriais ou cirúrgicos nos serviços públicos de saúde, ou mesmo pagar a coleta de lixo no ato de sua utilização.

A ninguém também, infelizmente, passa pela cabeça andar de ônibus sem nada pagar quando de sua utilização!

É o paradigma existente e para sua defesa não faltarão os argumentos da indivisibilidade de alguns serviços públicos, a distinção entre serviço público ou de utilidade pública e assim por diante.Em palavras simples, não faltarão argumentos pseudo objetivos para justificar tal contradição.São pura enrolação.
A Tarifa Zero é o nome que teve um projeto do governo de Luiza Erundina em 1991.

Propunha a criação de um fundo de transportes, que receberia todo o mês 25% das receitas da prefeitura e assim pagava o serviço de ônibus urbanos da cidade de São Paulo. Os usuários nada pagariam quando da utilização dos ônibus.

Para a constituição de tal fundo, foi necessário propor uma reforma tributária.Esta teve como fundamentos dois princípios:

- Os maiores beneficiários dos transportes urbanos, são as empresas que através desse serviço, tem garantida a presença dos trabalhadores nos locais de emprego, e, pois, ao contrário do sentimento já introjetado no raciocínio, dos subalternos, de que os grandes beneficiários do transportes são eles e que portanto devem pagar por isso, conforme o paradigma vigente.

- A reforma deveria ter como eixo o entendimento de que, quem tem mais paga mais, quem tem menos paga menos e quem não tem não paga.Era uma reforma para implantação de impostos fortemente progressivos e não regressivos, como em geral no Brasil.

Não era possível estabelecer uma taxa transportes, maneira mais direta de contemplar recursos para o fundo, pois a criação de impostos ou taxas é iniciativa exclusiva do parlamento nacional.

Os impostos que sofreram alterações mais radicais , seguindo os princípios acima , foram o IPTU e ISS.
A reação ao projeto foi típica da reação a alterações de paradigmas.
De um lado os interesses econômicos, que nunca estão dispostos a pagar o preço que lhes é devido na sociedade, sobretudo em relação aos serviços públicos.

De outro lado, as classes médias ditas cultas, as associações de classes a
elas estreitamente ligadas e a mídia .
Em todos os casos a estratégia era a de desqualificação do projeto.
“Os ônibus serão invadidos por vagabundos e bêbados que não têm o que fazer“. “Haverá depredações pois não se dá valor ao que não se paga”.
“Pobres inquilinos que terão de arcar com um altíssimo IPTU”.
“Haverá um aumento geral dos preços pois o aumento de impostos serão repassados aos mesmos”.

O trabalhador não precisa de ônibus de graça mas sim de ganhar um salário que lhe permita ter um transporte de boa qualidade, foi o que disse à época Luís Inácio Lula da Silva.
No governo e no PT, então partido da prefeita, a quantidade de reações contrárias foi enorme. Poucos secretários e membros da cúpula do governo abraçaram o projeto.

Especialistas em transportes e urbanismo viram diversos fantasmas na proposta, desde sua inviabilidade técnica ( o que é uma bobagem), até a idéia de que isso subverteria o uso do solo, estimulando o periferização da cidade, dada a gratuidade dos deslocamentos, etc...etc...

O que se pode dizer que a tarifa zero, ” muda tudo”, e é essa sua intenção.
Com ela , finalmente se poderá ter a garantia do ir e vir da Constituição Federal.
Com ela, finalmente, se terá, para os subalternos a liberdade de deslocamento, hoje privativo dos que tem automóvel e renda para usá-lo sem limites. Não é por outra razão que o automóvel tem o apelo quase mítico em possuí-lo.
Com ela, se pode propor uma reforma tributária municipal “p’ra valer”.

Impossível falar sobre todos os aspectos e contradições evidenciados pela tarifa zero em um simples texto.

Além do potencial de revolucionar os transportes urbanos e assim a mobilidade de todos os moradores das cidades, ela tem um conteúdo de entendimento político que permite perceber com uma clareza impressionante, as verdadeiras travas, sejam políticas, econômicas, ideológicas, comportamentais, de valores introjetados etc... que impedem qualquer transformação mais profunda na sociedade brasileira.

No livro “Um governo de esquerda para todos”, Paul Singer, secretário de planejamento da prefeitura à época e um dos poucos secretários que defenderam ardorosamente o projeto, o leitor interessado poderá achar informações detalhadas sobre o projeto.

Em tempo. O projeto de 1991 não foi votado pela Câmara de Vereadores.
Pesquisa de opinião feita pelo Instituto Toledo deu como resultado que cerca de 70% dos entrevistados tinham entendido o significado da proposta enquanto reforma tributária e conseqüente gratuidade dos ônibus e aprovavam o projeto.

Nem tudo está perdido.

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