domingo, 1 de janeiro de 2012

O fracasso do modelo privado de transporte coletivo em Joinville – por um transporte público

Por Hernandez Vivan

O transporte coletivo de modelo privado fracassou em Joinville – e poderíamos estender, grosso modo, a mesma afirmação para o restante do Brasil. Essa é uma afirmação forte, certamente, mas ainda sim não se trata de exagero ou desvio retórico. Hoje o transporte coletivo tem uma qualidade ruim, tarifa cara e é incapaz de agregar mais passageiros, perdendo usuários para carros e motos. É necessário demonstrar esse fracasso, pois assim poderemos pensar para além desse modelo privado. O texto que segue é uma tentativa disso. O problema de fundo é a licitação do transporte coletivo anunciada pelo IPPUJ. Queremos pensar uma alternativa de transporte que não seja apenas a mera legalização das atuais empresas privadas – o que aparentemente se avizinha nos planos do IPPUJ. Exploração do transporte ilegal e sem licitação é tão boa – ou melhor, tão ruim – quanto exploração legalizada e licitada.        
 
*  *  *
A tarifa do transporte coletivo em Joinville é cara. Citar um dado pode ajudar a pensar isso numa maior escala, mas não contradiz a experiência cotidiana de milhares de joinvilenses que sentem em seu bolso esse absurdo preço. Em Joinville, nesse sentido, a tarifa aumentou 325% de 96 até 2011, ao passo que a inflação foi cerca de 176%. Supondo que para um setor importante dos trabalhadores o reajuste de seus salários acompanhe a inflação, nota-se claramente que a tarifa ultrapassou em muito a inflação. O principal fator de escolha do transporte coletivo pelo usuário é o preço[i]. Por não se acomodar ao orçamento, o transporte acaba por ser preterido em favor de outros meios ou mesmo a mobilidade passa a não ocorrer para grandes contingentes da população. A Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE mostrou que o transporte é o terceiro maior gasto das famílias no Brasil (16%), atrás apenas de alimentação (16,1%) e moradia (29,2%)[ii]. A tarifa, que é aquilo que condiciona o acesso ao transporte, é o principal responsável pela expulsão de usuários do sistema de transporte coletivo e por um rombo significativo nos orçamentos familiares. O aumento exorbitante da tarifa é a prova contundente que o modelo de transporte atual é incapaz de acompanhar a renda daqueles que deveria promover a mobilidade. Como se trata de um transporte alçado à condição de mercadoria, trata-se de uma mercadoria cujo preço é incompatível com as possibilidades de compra de seus clientes, uma mercadoria cujo preço emperra sua própria demanda. O problema é quando essa mercadoria, de preço abusivo e quase inacessível, é justamente aquilo que deveria ser um direito elementar de todo cidadão.
            O transporte coletivo em Joinville não é de boa qualidade. Basta tomar um ônibus em um horário de pico para constatar a veracidade disso. A mesma pesquisa SIPS revela que no geral os usuários de ônibus reprovam, em mais de 50%, a qualidade dos serviços prestados[iii]. Embora Carlito sempre argumente que o transporte de Joinville tem boa qualidade – índice do seu desconhecimento da realidade da maioria da população –, e o faça amparado em uma “pesquisa”, até hoje essa pesquisa jamais veio a público. O que existe de mais próximo é a pesquisa do Instituto Mapa[iv] que demonstrou que nos quesitos interligação, conforto, em relação ao serviço prestado e ao preço pago Joinville apresenta notas abaixo de 5. A interligação precária entre bairros revela um modelo de transporte que funcionaliza a mobilidade de modo a ter prioridade em deslocar as pessoas para o trabalho e o consumo centralizados, e não outros tipos de interações bairro com bairro. Já a falta de conforto é resultado direto do modelo tarifário empregado, que em vista de incrementar os ganhos do empresário do transporte necessita lotar os ônibus, ganhando o empresário em lucro e o usuário perdendo em qualidade. A pesquisa também mostrou que satisfeitas algumas condições no transporte coletivo, como o melhoramento da relação custo-benefício, se houvesse mais horários de ônibus, se o tempo de trajeto fosse mais curto e se houvesse mais conforto, 40% daqueles que não utilizam transporte coletivo (ou o utilizam apenas uma vez na semana) passariam a fazê-lo com certeza e 42% provavelmente o fariam, perfazendo 82% de usuários que entrariam no sistema se as condições do transporte melhorassem – sobretudo nos quesitos preço da tarifa e qualidade. Para rebaixar mais ainda a qualidade, nos últimos anos as linhas disponibilizadas  entre 01h30 e 04h30 foram retiradas, linhas essas que atendiam diversos usuários que deixavam seus postos de trabalho durante esse período ou que usavam o transporte com a perspectiva do lazer noturno.
            O transporte de Joinville demonstra seu fracasso, ainda, na medida em que não agrega usuários, mas sim os perde para outros meios. Em 2000 o número diário de passageiros era 139.022 (para uma população de 429.604). Em 2009 havia diminuído para 137.058 (para uma população de 497.331)[v]. É claro que isso está relacionado a uma política de desenvolvimento econômico fundada na indústria automobilística e no mercado interno – opções políticas que não nos deteremos nesse texto, embora, resulta evidente, que essas opções desenvolvimentistas têm causado custos visíveis, como um inchaço urbano brutal –, porém também em decisões erradas que fazem do transporte coletivo pouco ou nada atrativo para a maioria da população. O preço da tarifa, o principal fator da perda de usuários, permanece num ritmo de escalada, por exemplo.
            A não-mobilidade de boa parte dos joinvilenses – e a incapacidade do poder público em dar respostas ao problema – pode ser aferida consultando-se o jornal A Notícia de 14 de julho de 2010 que revelou dados de uma pesquisa de mobilidade realizada pelo IPPUJ. Segundo a pesquisa, 34,24% dos deslocamentos são não-motorizados (a pé ou de bicicleta). E quando são motorizados, o ônibus perde para o carro (Carro: 34,55%, ônibus: 21,79%; inclusive as pessoas andam mais a pé, 23,11%, do que de ônibus...). A conclusão imediata dos técnicos do IPPUJ foi: os microdeslocamentos (deslocamentos pequenos, internos aos bairros, que não tem como destino o centro da cidade) predominam e é necessário melhorar as calçadas. O mínimo viés de negatividade sequer foi introduzido nos dados. E se se tratar do contrário? E se a pesquisa de mobilidade puder ser lida como a pesquisa de não-mobilidade, de guetização, de compressão espacial dos habitantes de Joinville em zonas bem determinadas? A maioria dos deslocamentos a pé eram em bairros de menor renda per capita, ao passo que a maior parte dos deslocamentos motorizados eram nos bairros de maior renda. Ainda: aqueles que argumentavam que se deslocavam a pé ou de bicicleta, segundo a reportagem, diziam que tinham como destino compras simples, lotéricas, trabalho etc. É sintomático que ninguém que anda a pé ou utiliza bicicleta tenha dito que usa esses meios para ir a um teatro gratuito na Associação Joinvilense de Teatro. Os microdeslocamentos tratam-se de uma tendência, é certo; mas uma tendência que a expressa a não-mobilidade efetiva e o fracasso retumbante do transporte coletivo de modelo privado. A saída do IPPUJ é funcionalizar a não-mobilidade, e não proporcionar a mobilidade efetiva que permita a mediação a direitos básicos, como saúde, cultura, educação etc., que não se conformam aos estreitos horizontes de um bairro apenas e seus microdeslocamentos. A tendência histórica da constituição da cidade, isto é, a periferização dos trabalhadores em vista do aumento da exploração de sua força de trabalho, é elevada a projeto governamental consciente, ao invés de contrabalançar essa tendência ofertando transporte de qualidade.
*  *  *
            A condenação ao transporte de modelo privado parecerá injusta se não for seguida de uma alternativa. Que seja. Vou aduzir um exemplo radicalmente distinto do privado para pensarmos em contraste.
            Em Hasselt, cidade da Bélgica de pouco mais de 70 mil habitantes, foi-se introduzido o Tarifa Zero (um projeto similar foi aplicado parcialmente no início da década de 90 em São Paulo; hoje existe nas cidades brasileiras de Agudos e Porto Real). O projeto consiste em financiar inteiramente o transporte com impostos progressivos, que incidem sobre as parcelas mais ricas da população – é claro que no Brasil a carga tributária é regressiva, incide mais no consumo dos pobres do que na propriedade dos ricos, e a aplicação local exigiria uma reforma tributária. Somado a isso, é necessária uma auditoria no transporte e a criação de uma empresa gerenciadora.
            Em Hasselt após a implantação do Tarifa Zero, de 96 a 2006, o uso do transporte aumentou 1319%[vi]. O que o SIPS já havia projetado foi constatado em Hasselt: um transporte gratuito e com qualidade é atrativo ao usuário. Em Hasselt o uso aumentou em treze vezes.

*  *  *
Lento e caro, o transporte coletivo perde usuários. A falta de investimentos no transporte junto a taxa de lucro sagrada e intocada dos empresários criou uma situação na qual mesmo o transporte coletivo sendo o meio que menos ocupa espaço nas vias, menos energia gasta, menos poluição causa e menos acidentes de trânsito causa[vii], não é atrativo. Hasselt é uma alternativa. A outra alternativa é um transporte ruim que ao expulsar usuários faz da motocicleta um atrativo – o meio de transporte que provoca e que é vítima de mais acidentes de trânsito –, o que acaba por inchar a saúde pública e abreviar as vidas de milhares de pessoas, sobretudo de jovens trabalhadores. Transporte público de qualidade é também alternativa para a saúde pública.
            Em Joinville vivemos uma oportunidade histórica: é momento, depois de quarenta e cinco anos de exploração da Gidion e quarenta e três da Transtusa, podermos experimentar um modelo de transporte diferente. Vivemos um momento que a cidade deve decidir o que será: uma cidade verticalizada, com trincheiras e viadutos, com predominância do carro ou uma cidade democrática, com transporte coletivo público, de qualidade e com gestão democrática, com incidência de vento e sol não obstada por gigantescos prédios. Gidion e Transtusa não conseguem providenciar o que justamente deveriam providenciar: mobilidade. Uma licitação que venha apenas para legalizar a situação precária do transporte, mas que mantenha a exploração privada, não servirá em nada nos propósitos de providenciar mobilidade urbana.
            Gidion e Transtusa já tiveram sua chance e fracassaram. É o momento de se experimentar um transporte verdadeiramente público, fora da lógica do lucro e em vista de uma cidade democrática.


[i] Sistema de Indicadores de Percepção Social, maio de 2011, p. 8, disponível em http://www.ntu.org.br/novosite/arquivos/IPEA_sips_mobilidadeurbana.pdf.
[ii] Tabela 1.1.2 – Distribuição das despesas monetária e não monetária média mensal familiar, por classes de rendimento total e variação patrimonial mensal familiar, segundo ostipos de despesa - Brasil - período 2008-2009, disponível em http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/pof/2008_2009/tabelas_pdf/tabela1_1_2.pdf.
[iii] Sistema de Indicadores de Percepção Social, p. 10, maio de 2011.
[v] Joinville em números, IPPUJ, p. 10, disponível em http://www.ippuj.sc.gov.br/conteudo.php?paginaCodigo=155.
[vi] Em http://tarifazero.org/2009/08/13/transporte-publico-gratuito-em-hasselt-belgica/
[vii] Custos dos Deslocamentos – Custos para usar ônibus, moto e automóvel (Associação Nacional de Transportes Públicos), março de 2010, p. 4, disponível em http://portal1.antp.net/site/simob/Downloads/Custos%20da%20Mobilidade%20-%20mar%C3%A7o%20de%202010.pdf.

0 comentários: