Ex-secretário municipal de São Paulo sustenta que o transporte é um direito similar à escola pública e, que a seu exemplo, deve ser custeado pelos mais ricos
Renato Godoy de Toledo,
da Redação
Inverter a lógica de que os beneficiados com o transporte coletivo são os usuários. Este é o cerne do projeto Tarifa Zero, apresentado pelo ex-secretário municipal de transportes de São Paulo, Lúcio Gregóri, durante a gestão da então petista Luiza Erundina (1989-92). O projeto foi duramente criticado pela imprensa corporativa e a oposição, além de ter sofrido resistências internas no Partido dos Trabalhadores. O projeto previa a criação de um Fundo Municipal de Transportes e acarretaria numa reforma tributária “para valer”, em que os ricos arcariam com os custos da isenção do transporte para a população.
Gregóri, atualmente, concede palestras aos militantes do Movimento Passe Livre (MPL), que organizam-se nacionalmente contra os aumentos tarifários e têm como norte a constituição de um sistema de transporte público e gratuito, em que o custo da tarifa, tal como no projeto de Gregóri, seria bancado pelos que não precisam do transporte e, atualmente, se beneficiam de sua exploração.
O MPL tem feito nas últimas semanas em São Paulo atos contra o aumento das tarifas de ônibus, trem e metrô (leia mais aqui). Em entrevista ao Brasil de Fato, Gregóri deu mais detalhes sobre o seu projeto e defendeu a gratuidade do transporte, tal como na saúde e educação.
Brasil de Fato - Em que se baseia o seu projeto Tarifa Zero e quem arcaria com os seus custos?
Lúcio Gregóri - O projeto Tarifa Zero procurava dar tratamento aos transportes públicos municipais de São Paulo igual a todos os demais serviços públicos Em nenhum deles há pagamento no ato de sua utilização e todos são pagos pelo conjunto de impostos e taxas municipais. É o caso das escolas municipais, dos postos de saúde e hospitais municipais, da construção e utilização de viadutos, ruas e avenidas da cidade etc… O único serviço pago no ato de sua utilização é o dos ônibus urbanos. O entendimento das raízes disso deve dar uma boa tese ou teoria. Para ser como os demais serviços, o projeto criava um Fundo Municipal de Transportes que tinha uma percentagem do orçamento municipal e que pagava os serviços de ônibus que passavam a serem como que fretados pela prefeitura. Tal como, por exemplo, quando a prefeitura faz um viaduto ou túnel. Paga a empreiteira ou faz por conta própria (hoje muito raramente) e não cobra do automóvel ou do pedestre que por eles passa. Como tratava-se de uma despesa a mais, a Tarifa Zero implicava numa reforma tributária, cuja proposta era de cobrar mais de quem tem mais, pouco de quem tem pouco e não cobrar de quem não tem. Nessa reforma, partia-se do conceito de que os principais beneficiários do transporte público são os proprietários das atividades econômicas da cidade e não, como difundido pela ideologia vigente, os passageiros. Portanto o projeto era, também, um projeto de reforma tributária para valer e, portanto, um projeto de reformulação de políticas públicas.
BF - Quais foram as dificuldades que o senhor enfrentou, devido ao seu posicionamento, durante a gestão Erundina?
Gregóri — As resistências foram de todo tipo. No governo, entre os vereadores do PT, e nas instâncias partidárias. Nos outros partidos foi de luta feroz, seja por ideologia e compromissos econômicos, seja por luta contra Erundina. É claro que se o projeto fosse aprovado pela Câmara Municipal, Erundina teria uma força política poderosíssima. Por isso, dentro do PT as forças ligadas ao hoje chamado Campo Majoritário eram muito resistentes ao projeto. Lula, Genoíno e maioria do secretariado eram contrários ou resistentes ao projeto, enquanto ficaram claramente a favor do projeto, Marilena Chauí, Paul Singer [então secretários de Cultura e Planejamento, respectivamente] e Paulo Sandroni, presidente da estatal de transportes. Afinal, a proposta mexia com valores e tabus estabelecidos ideologicamente. Lula, por exemplo, disse algo como “trabalhador não precisa de ônibus de graça, ele precisa ganhar o suficiente para ter um transporte de qualidade “. Acho que ele demonstrou não só não ter entendido os fundamentos do projeto, como revelou sua efetiva visão da sociedade (meio “poliânica”, não é verdade?). A mídia e os “ (de)formadores de opinião” fizeram oposição , em alguns casos feroz e destrutiva. Os quadros do PSDB também. Na sociedade civil e órgãos de classe também. No instituto de Engenharia, ficaram efetivamente furiosos. Não sei se por eu ser engenheiro isso tornava a questão ainda mais passível de preconceitos. Ressalte-se, porém, que pesquisa feita pela Toledo e Associados mostrou que a população entendeu perfeitamente e se mostrou a favor do projeto em cerca de 65%.
BF - Qual sua posição frente ao atual sistema de concessões públicas para que empresas privadas explorem o transporte coletivo? Gregóri - Penso que o regime de concessão engessa o serviço público de duas maneiras. Simplificadamente: a concessão pressupõe o equilíbrio econômico do contrato, que é por tarifa, e portanto não haverá como aumentar muito fortemente o subsídio e, claro, implantar a gratuidade. A concessão se dá por um número elevado de anos, 15, 20, 30 anos em geral. Mas a cidade e seus transportes precisam se modificar muito rapidamente em prazos muito menores do que estes. O concessionário passa a ser um entrave a essas adaptações, pois racionalmente ele buscará sempre a maior lucratividade do seu negócio e com as menores modificações possíveis, inclusive por que é um sistema sem concorrência. Estamos assistindo aí em São Paulo a queda de braços entre empresários e população, algo que se repete interminavelmente no Brasil todo, há anos e anos. Uma boa pergunta é: porque nos Estados Unidos, capital do capitalismo e praticamente em toda a Europa os sistemas de transportes são estatais? No tempo de Erundina foi criado o Conselho Municipal de Tarifas (Comtar), que entre outras, estabelecia a planilha de custos dos ônibus da cidade. Tinham assento nesse conselho, a prefeitura, Dieese, sindicatos dos trabalhadores no setor e patronal, outros órgãos da Sociedade Civil etc… Entã,o o custo era público e transparente. Não sei como é hoje. Pela leitura da grande imprensa parece tudo muito obscuro. Para não dizer escandaloso. Só um dado: em 1992 o transporte por ônibus era atividade de mão de obra intensiva. Mais de 60% do custo por passageiro era de mão de obra. Combustíveis e lubrificante, representavam de 6 a 7%. Outro dado: em 1992 , na média a tarifa de ônibus era de 43 centavos de dólar cerca de R$ 1,00. O resto era subsidiado pela prefeitura. Será que os custos subiram tanto assim? Mas não há uma planilha pública e socialmente discutida.
Fonte: Brasil de Fato