Por
Miguel Neumann – militante do MPL Joinville
Manifestação dentro do Terminal Cental |
O Ministério Público do Trabalho ajuizou ação sobre o direito à
liberdade sindical dos trabalhadores do transporte coletivo de
Joinville. Os réus, como não poderiam deixar de ser, são o próprio
Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Transporte Rodoviário de
Passageiros de Joinville, a Gidion e a Transtusa. É um segredo
compartilhado por todos que o sindicato sempre teve ligação
umbilical com as empresas. A novidade da ação, todavia, consiste em
realizar uma pesquisa a fundo sobre o assunto, como ninguém mais
poderia fazer, reunindo uma extensa diversidade de depoimentos que
comprovam o descompromisso do sindicato com o bem estar dos
trabalhadores bem como o caráter antidemocrático da Gidion e
Transtusa ao controlá-lo por meios indiretos.
O
objetivo desse texto é apresentar os pontos que me parecem mais
significativos da ação em uma linguagem popular e, com isso,
contribuir com a reflexão a respeito do modelo de transporte
coletivo que desejamos que vigore nos próximos anos em Joinville,
sobretudo por estarmos em um contexto de licitação, portanto
crucial para o futuro imediato de nossa cidade. Um modelo que
significou e significa a perseguição, humilhação e demissão de
trabalhadores que desejam gozar do seu direito elementar à
organização deve perecer e dar lugar a uma organização de
transporte que permita, contribua e facilite esse processo de
autoorganização dos trabalhadores.
Antes de
iniciar propriamente a apresentação da ação vale dizer que ela é
pública e está disponível, por meio de requerimento, na sede do
próprio Ministério Público do Trabalho. Ela encontra-se sob o
número 0001338-13.2013.5.12.0028 e pode e deve ser acessada por
aqueles que têm interesse em mais do que uma exposição parcial –
que é aquilo que esse texto pode oferecer.
Patrões do Transporte e Patrão-Prefeito Udo Döhler |
Sobre
a ação
A ação
divide-se em três partes. A primeira busca caracterizar o sindicato
atual dos trabalhadores de transporte como um “sindicato amarelo”;
a segunda reconstitui as ilegalidades que orientaram as últimas
eleições do sindicato em 2013; e, por fim, a terceira parte
constitui o pedido da promotoria frente ao juiz. Sigamos, em linhas
gerais, essa estrutura1.
Sindicato
amarelo, conforme citado na própria ação, é quando “o próprio
empregador estimula e controla (mesmo que indiretamente) a
organização e ações do respectivo sindicato obreiro”2
(p. 2). A promotoria, conforme doutrinadores do direito, também
afirma que o setor mais propenso a práticas antissindicais é o
empregador, tratado como “infrator potencial da liberdade sindical”
(p. 4). Nesse sentido, a ação declara:
“No setor dos réus, tal
propensão se faz sentir sobremaneira. Afinal, o que mais empresários
do ramo do transporte coletivo urbano poderiam desejar, além do
monopólio do serviço por décadas sem licitação? (...)
Infelizmente o Ministério Público do Trabalho verificou que para
além da mera ‘propensão’ das empresas em influenciar o
sindicato, o que existe entre os réus é uma verdadeira
promiscuidade de relações, perniciosa a toda a categoria
profissional e, certamente à sociedade joinvilense. Por conta dela,
as empresas controlam as reivindicações dos trabalhadores e, em
troca, a diretoria do sindicato se perpetua no poder” (p. 4)
Esse é
o resultado da ação apresentado de modo preliminar. Resta mostrar o
processo que permitiu ao MPT chegar a essa conclusão.
E o
processo teve início com a denúncia de um cidadão trabalhador que
alegou que sua candidatura à Comissão Interna de Prevenção de
Acidentes (CIPA) foi fraudada. Carlos1
apresentou listagem com a assinatura de 59 pessoas que votaram nele,
muito embora no edital com o resultado houvesse apenas trinta votos
favoráveis a sua candidatura (pp. 4-5). Segundo Carlos, sobre a
fraude,
“acredita que isso ocorreu
porque tinha uma ligação com um trabalhador que cogitou formar uma
chapa de oposição para as eleições do sindicato desse ano [2013]
e também porque o depoente fez uma campanha forte para que seus
eleitores de fato fossem votar e votassem nele. (...) no mesmo
dia em que o depoente foi dispensado também foi dispensado o Sr.
João, apenas porque este comentou que o que aconteceu com o depoente
estava errado e que acreditava que a contagem de votos tinha sido
fraudada” (p. 5).
Como
nota a ação, “a estabilidade empregatícia garantida ao membro da
Cipa eleito pelos empregados faz com que essas comissões funcionem
como potenciais nascedouros de líderes da classe trabalhadora” (p.
5), e, por isso mesmo, é estratégico para as empresas que cortem o
“mal pela raiz” atuando na demissão daqueles que a ela se
candidatem. A ação ainda nota que nas atuais Cipas da Gidion
participam trabalhadores de grande confiança da empresa, como um
controlador operacional, logo convenientemente promovido a supervisor
de negócios, um instrutor operacional e uma assistente de RH.
Notável como em uma empresa de transporte coletivo não há
motoristas cipeiros.
O
trabalhador com quem o sr. Carlos tinha ligação era o Sr. Élcio. O
testemunho de Élcio dá conta de que
“foi dispensado sem justa
causa pela empresa; que era cipeiro e seu mandato iria até o
final deste ano; que ajuizou reclamatória trabalhista
questionando isso; que a empresa não alegou nenhum motivo para
dispensá-lo, apenas disse que teria que dispensar alguém e que
havia chegado a vez do depoente; que acredita que foi dispensado
por ter participado de uma reunião em Blumenau com o sindicato
daquela cidade que ajudaria o depoente e outros sete trabalhadores a
compor uma chapa de oposição para as eleições do Sindicato dos
Trabalhadores nas Empresas de Transporte Rodoviário de Passageiros
de Joinville; que cerca de 15 dias após sua participação
nessa reunião o depoente foi chamado a comparecer na matriz da
empresa quando o sr. Jacson e o sr. Skill, ambos supervisores,
informaram ao depoente que sabiam de sua participação em referida
reunião e indagaram quais outros trabalhadores haviam participado.
(...) como a empresa na verdade não sabia ao certo quem estava
articulando a oposição, dezenas de outros trabalhadores foram
dispensados, apenas por falsas suspeitas” (pp. 5-6).
O sr.
Élcio foi, antes de sua demissão, realocado para o terminal do Nova
Brasília, de menor visibilidade a fim de facilitar sua exclusão da
empresa. Até aí
teríamos
um depoimento isolado se não fossem todos os seguintes que confirmam
a mesma prática antissindical promovida pela Gidion e Transtusa.
Outro ex-trabalhador, o sr. Ismarildo, acredita “na verdade
[que] o Sindicato não é dos trabalhadores; que diz
isso porque os trabalhadores que lá comparecem para fazer qualquer
reclamação contra a Empresa são dispensadoos depois de alguns
dias” (p. 6). Uma testemunha que optou pelo anonimato
contou ao MPT que reclamou ao Sindicato certos direitos que, no seu
entender, seriam negligenciados pela Gidion. O representante do
sindicato confirmou, via telefone, que, de fato, tais direitos eram
sonegados, o que prontamente ensejou a pergunta, por parte da
testemunha anônima, se o Sindicato nada faria. Conforme seu
depoimento, afirmou “que o represente do
sindicato então desejou saber qual era o empregador do depoente e a
identidade deste; que o depoente se negou a dizer; que o
representante do sindicato então pediiu para que o depoente fosse
até o sindicato a fim de conversar pessoalmente sobre o assunto; que
o depoente respondeu que não iria se fazer presente para não ser
identificado, pois sabia que se fosse identificado pelo sindicato
estaria na ‘na rua’ no dia seguinte; que o representante do
sindicato riu” (pp. 9-10).
Fatos
isolados e singulares? Não parece ser o caso. Instrutivo a esse
respeito é o depoimento do sr. Sebastião, ligado ao Sindicato dos
Metalúrgicos, que, citado em depoimentos, teve participação na
formação de uma chapa nas eleições de 2006, na qualidade de
representante local da Central Única dos Trabalhadores. A eleição
de 2006 ocorreu apenas após ação pública (explicarei o caso
adiante). Sebastião contou que parte do esquema de permanência do
atual grupo no poder do sindicato deve-se não apenas a mecanismos
tipicamente repressivos, o mais alto deles a demissão, mas também
ocorre através da cooptação de trabalhadores. Disse ele:
“(...) nessa condição [de
representante da CUT] foi procurado há pouco mais de 06 (seis)
anos por alguns trabalhadores das empresas Gidion e Transtusa que
pediram assistência para criar uma chapa de oposição para
concorrer nas eleições do Sindicato dos Trabalhadores no Transporte
de Joinville; que passou a orientar esses trabalhadores sobre como
deveriam proceder para criar uma chapa sem deixar que o nome de seus
integrantes transparecesse para as empresas, pois no meio sindical é
consabido que o fato de a empresa conhecer os nomes de pessoas que
pretendem participar da eleição pode vir a trazer prejuízo para
estas; que teve contato, nessas orientações, com o Sr. Valdecir,
empregado da Transtusa, e o senhor Probato, empregado da Gidion; que
antes do registro da chapa a Transtusa ofereceu ao Sr. Valdecir, o
qual então tinha estabilidade por ser CIPEIRO, a coordenação do
terminal norte, isto é, propôs-lhe uma promoção; que o sr.
Valdecir aceitou isso; quanto ao sr. Probato, os componentes da então
‘situação’ do Sindicato profissional lhe deram oportunidade de
participar de sua chapa; que com isso esses trabalhadores
acabaram por abandonar a ideia de compor uma oposição; que soube
que os demais trabalhadores que pretendiam compor a chapa de oposição
acabaram por ser dispensados pelas duas empresas (p. 10).
No
entanto não basta cooptar e demitir, é ainda preciso intervir
ativamente no processo. Segundo ainda Sebastião, seu testemunho
indica que quanto à eleição de 2006 “soube que as empresas
providenciaram o pagamento das mensalidades sindicais de todos os
trabalhadores componentes de seu quadro administrativo; que
efetivamente presenciou micro-ônibus das empresas chegando no
sindicato de onde desembarcaram trabalhadores administrativos para
votar” (p. 11).
A ação
é mais rica que essa pálida seleção de depoimentos. No entanto,
parece a partir deles ser possível caracterizar com segurança o
status de “sindicato amarelo” do sindicato dos
trabalhadores de transporte de Joinville. A epígrafe inicial da ação
pública correlaciona corretamente o direito à liberdade com a
efetivação da democracia como um todo. A negação desse direito a
um setor significativo da sociedade joinvilense
constitui
uma afronta a toda sociedade; os direitos não podem, ou não devem,
ser suspendidos no interior do espaço de trabalho. Pois esse é
justamente o caso, caso invisibilizado em razão do poder econômico
das empresas rés amparadas por um sindicato que não cumpre com sua
função mais básica de representação política. E porque essa
insatisfação, embora grandiosa, permanecia ainda invisível? Há
aproximadamente dois anos trabalhadores da Transtusa tentaram criar
uma associação meramente recreativa. Isso foi o suficiente para a
demissão de vários deles. A ação relata: “Com efeito, à época
houve denúncia sobre o tema perante a Procuradoria do Trabalho, mas
como o denunciante se negou a informar nomes de participantes do
movimento, por temer represálias da empresa, o inquérito acabou
arquivado por falta de provas” (p. 14). Um trabalhador esclarece a
razão de toda essa insatisfação permanecer, em grande medida,
ainda invisível: “indagado pelo Procurador o motivo de ninguém
ter procurado o MPT na época, considerando que havia até
investigação sobre os fatos, o depoente afirmou que provavelmente
isso ocorreu em razão do receio dos trabalhadores de serem
dispensados e não conhecerem a possibilidade de solicitar sigilo de
sua identidade, pois se soubessem disso vários viriam depor, já que
todos são revoltados com a promiscuidade entre as relações da
empresa com o Sindicato profissional” (p. 14). Estamos diante
de um poder fundamentalmente autocrático que a partir do espaço de
trabalho cria um clima político de medo em parte importante da
sociedade.
O clima
de medo vinculado à possibilidade da perda do emprego na empresa
privada impossibilitou por grande tempo uma visão de conjunto
equilibrada sobre a situação dos trabalhadores por parte do poder
público e da maioria da sociedade. Todavia, no interior da empresa a
situação apresentava-se clara, a ponto de a investigação
promovida pela Procuradoria chegar a estar com depoimentos em
demasia: “De todo modo, além das 08 (oito) testemunhas até então
ouvidas, foram ouvidas outras dezesseis (16) pessoas. Todos os
depoimentos convergem com o quadro de manipulação do sindicato
pelas empresas e de direcionamento das eleições pelos réus. A dado
momento eram tantos o trabalhadores que compareciam na Procuradoria
para depor, motivados por sua revolta com as eleições, que se
passou a dispensar as oitivas (esses outros depoimentos foram
colhidas às vésperas e durante as últimas eleições sindicais,
ocorridas em agosto/2013)” (p. 11).
Vista em
sua especificidade interna, a situação dos trabalhadores de
transporte em Joinville é, por si mesma, absolutamente lamentável.
Mas se vista em termos comparativos? A ação pública, com esse fim,
passa a investigar os acordos coletivos de trabalho (ACT) de
Joinville e Florianópolis com o propósito de aferir, em outra
localidade, geograficamente aproximada de Joinville, qual a situação
dos trabalhadores de lá e cá. A ação avalia 33 pontos de
vantagens, direitos e obrigações das categorias em comparação –
os valores são referentes à data da ação. Antes de citá-los,
vale lembrar, como se não fosse suficiente, que a tarifa em
Florianópolis é ligeiramente menor que em Joinville. Dos 33 pontos
citados em cinco deles Joinville proporciona melhores condições aos
trabalhadores que em Florianópolis, a qual, por sua vez, supera
Joinville em vinte e cinco outros pontos, sendo dois deles
“equivalentes” e um deles indefinido (por uma razão a ser
comentada adiante). Entre as vantagens de Florianópolis encontra-se
o salário normativo (cerca de R$450 superior ao de Joinville); o
tíquete alimentação (superior em R$140), a existência de
participação nos lucros (inexistente em Joinville); a possibilidade
de adiantamento de 40% do salário (inexistente em Joinville); a
duração do trabalho fixada em 6h30min diários (em Joinville são
44h semanais); o fato de o motorista não possuir a dupla função de
vender passagens (sabemos, em Joinville isso ocorre há mais de dez
anos); adicional noturno de 30% (em Joinville é de 20%); salário
no
contrato de experiência idêntico ao piso (em Joinville o valor é
de 90% do piso); a previsão de descontos salariais de 10% do piso,
ou da franquia, sobre danos em veículos (em Joinville a cobrança
dá-se de forma ilimitada); não há previsão que motorista, ou
mesmo cobrador, cumpram a função de limpeza no interior dos
veículos (em Joinville, ao contrário, essa função também cabe ao
motorista). A ação pública é precisa ao definir que “Em alguns
pontos o ACT de Joinville parece mais um regulamento empresarial do
que um instrumento de negociação coletiva” (p. 15).
* * *
Intervenção sobre a fachada da Transtusa: Futura Empresa Pública de Transporte |
Esses são, em linhas muito esquemáticas, os argumentos que permitem à ação concluir que o sindicato é, de fato, “amarelo”, patronal, contrário à reivindicação dos trabalhadores. A segunda parte da ação civil pública trata de analisar as eleições ocorridas em agosto de 2013, com a ressalva de que “o histórico antidemocrático do sindicato réu já vem de longa data. Ao cabo do mandato da diretoria anterior, por exemplo, em 2006, as eleições só foram realizadas por ordem do Juízo da 1ª Vara do Trabalho, acolhendo pedido do MPT” (p. 21). Formalmente, o estatuto antidemocrático do sindicato permitiu a extensão do mandato dos burocratas em questão, na medida em que permitia que, na vacância de 50% dos cargos e sem suplência, seria possível escolhê-los via assembléia extraordinária e prorrogar em seis anos (!) o mandato. A Vara do Trabalho, a par da evidente manobra, declarou esse ato de efeito nulo e obrigou o chamado de novas eleições.
Não é uma afirmação destemperada e fora do bom senso dizer que as eleições do sindicato em 2013 foram um golpe antidemocrático sobre a categoria de trabalhadores do transporte. Golpe esse financiado diretamente pelas empresas Gidion e Transtusa. A explicação dessa asseveração é simples. Essa manobra ocorreu em vários atos os quais tentarei reconstituir. A partir de janeiro de 2013 os benefícios advindos da associação ao sindicato, do corte de cabelo a plano de saúde, através do pagamento de mensalidades, passaram a não mais ser descontados da folha de pagamento e vieram a ser integralmente pagos pelas empresas. Ou seja, os serviços oferecidos pelo sindicato passaram a ser financiados pelas empresas rés. Vale lembrar que o Acordo Coletivo de Trabalho proíbe que as coisas assim ocorram (p. 22). Mesmo aqueles que jamais foram sindicalizados puderam usufruir dos serviços do sindicato. Aos incautos, aparentemente, uma benfeitoria das empresas frente a seus funcionários. Conforme a ação, “a cláusula ‘Dos Benefícios’ do acordo coletivo de trabalho firmado entre os réus (...) servia-lhes como instrumento de incentivo à associação, pois previa a concessão de uma série de benefícios pelas empresas, mas apenas aos trabalhadores associados ao sindicato profissional. As poucas vantagens previstas no acordo coletivo aos trabalhadores residiam justamente nessa cláusula e desse modo, praticamente todos os empregados se associavam ao sindicato (e tinham as mensalidades descontadas de seus salários)” (pp. 22-23).
Qual a razão da mudança dessa metodologia – pagar individualmente para ter os benefícios em oposição às empresas pagarem – precisamente em ano eleitoral? Essa aparente “benesse” nada mais era que uma tática de esvaziamento do número de filiados objetivando o maior controle da burocracia sindical em vistas de se garantir a vitória nas eleições. Sim, tratou-se da diminuição significativa do número de filiados, da redução drástica do número de associados. Parece insano um sindicato reduzir seu número de filiados, justo aqueles que lhe garantem a manutenção econômica e política. Todavia, quando a representação política se autonomiza das bases e quando seu financiamento não se dá mais pelo desconto dos trabalhadores, mas sim por meio do bolso dos patrões não há nada de estranho nisso. A ação emenda: “O que se fez, então, foi providenciar a desassociação em massa dos trabalhadores no ano das eleições, mediante suspensão dos descontos das mensalidades sindicais” (p. 23).
Para garantir a legalidade formal desse ato, o sindicato afixou edital, sem qualquer publicidade, comunicando que os benefícios seriam mantidos e quem desejasse permanecer associado deveria procurar o sindicato. A questão é urgente: ora, se os benefícios estavam mantidos, para que se manter associado, que vantagens isso podia trazer ao trabalhador? Permanecer associado garantiria um direito fundamental: o direito de votar e ser votado. Nesse momento, porém, esbarra-se na constituição histórica do sindicato amarelo do transporte:
“Mas, no contexto das
espúrias relações existentes entre os réus, acima referidos, quem
procuraria o sindicato para manter sua associação?
Ora, os benefícios haviam sido estendidos para todos os empregados,
ainda que não associados, e desse modo o único
interesse do trabalhador em manter sua associação seria a
participação nas eleições. Assim, os
trabalhadores já sabiam que se
procurassem o sindicato para manter sua associação
(e poderem participar das eleições) seriam
sumariamente dispensados pelas empresas (sob algum
pretexto, obviamente), pois ficaria claro para os réus que
o interesse do trabalhador era participar do sindicato. Como
resultado prático, manteve-se a qualidade de associado apenas
daqueles comprometidos com as empresas e a atual direção do
sindicato, de modo que apenas eles puderam compor chapa, votar e
elerger-se” (pp. 23-24).
A ideia
disseminada cirurgicamente a fim de enganar os trabalhadores era de
que a empresa estaria “pagando as mensalidades”, quando na
verdade ela pagava os benefícios, porém com a maioria tendo sido
desassociada – o que não era claro a categoria, tendo em vista que
o edital que promoveu a desfiliação não foi devidamente
publicizado. O processo todo ocorreu às costas dos trabalhadores. A
ação conclui, com bastante destaque, que o objeto da manobra era o
“evidente intuito de DIRECIONAR AS ELEIÇÕES” (p.
24).
Há
vários depoimentos que jogam luz sobre o caso. O caso da sra. Maria
parece um dos mais drásticos pois nela a indicação da constituição
de prova material sobre o ocorrido. O sr. Elcio citado anteriormente,
afirmou que a sra. Maria não deu-se por satisfeita com a desfiliação
de modo que “procurou o sindicato para pagamento das
mensalidades e este não aceitou; que a Sra. Maria fez
isso porque não poderia ser dispensada, já que estava afastada do
emprego recebendo benefício do INSS; que se fosse outro trabalhador
sem estabilidade fatalmente seria dispensado pela empresa, pois o
sindicato teria comunicado à empresa a intenção do trabalhador”
(p. 9). A própria sra. Maria disse que “o Sindicato não vem
prestando assistência para a depoente e inclusive esta atrasou
quatro mensalidades e compareceu ao sindicato para fazer o pagamento
em atraso mas o sindicato, na pessoa do Sr. Rubens Müller, não
aceitou; (...) que enviou uma carta para o sindicato
manifestando o seu interesse em pagar em atraso as mensalidades mas a
carta retornou com o AR com a anotação ‘RECUSADO’ e a
assinatura do Sr. Rubens Müller” (p. 7). A testemunha
apresentou no Ministério Público do Trabalho a carta, ainda
fechada, com a assinatura do sr. Rubens Müller.
Diante
desse quadro, será possível estimar em números o quanto significou
essa desfiliação em massa a fim de garantir, de modo arrivista, a
vitória nas eleições? Segundo a ação, “apenas a segunda
ré (Gidion) descontou dos salários a mensalidade sindical para 700
empregados em janeiro de 2012 ao
passo que, já por ocasião das eleições, havia apenas 86 (oitenta
e seis) associados aptos a votar, conforme documentos
apresentados pelo sindicato réu no inquérito (...). Em um
ano, o quadro de associados foi reduzido em cerca de 95%” (p.
26).
E isso
tudo ainda não basta a fim de determinar o alcance do atentado à
liberdade sindical promovido por empresas e sindicato. Questões
outras, ainda que “menores”, demonstram o descompromisso com a
democracia. O edital estabelecia que duas das três urnas de votação
seriam itinerantes e estariam localizadas nos principais locais de
trabalho (a outra estaria na sede do sindicato). Todavia, as duas
urnas supostamente itinerantes permaneceram fixas nas sedes das
empresas, segundo o próprio presidente do sindicato, em manifesto
desrespeito ao edital (p. 29). O edital publicado no jornal A
Notícia, ao dar aviso da existência das eleições, dizia ainda
que o edital resumido encontrar-se-ia na sede do sindicato, o que,
por sua vez, desrespeita o regulamento eleitoral. Regulamento esse
desrespeitado quando também deveria estar expresso os locais de
afixação ou trânsito das urnas e seu respectivo horário. Há
ainda outra irregularidade, de maior porte. Acompanhemos a
reconstituição de uma testemunha anônima:
“que
foi procurado por um colega para montar uma chapa para participar das
eleições do sindicato; que tendo aceito, passou a auxiliar na
montagem dessa chapa, inclusive abordando colegas para convidá-los;
que a chapa efetivamente foi formada com 20 (vinte) integrantes e
estes estavam aguardando a publicação pelo Sindicato do edital de
abertura do prazo de inscrição de chapas para a eleição; que
vários dos integrantes estavam adquirindo jornais “Notícias do
Dia”, “A Notícia”, “Gazeta de Joinville” e o “Jornal de
Santa Catarina”; que no entanto souberam ontem que o edital foi
publicado, o prazo para a inscrição já terminou e as eleições
ocorrerão nesta sexta-feira dia 30/08 sem que nenhum dos integrantes
tivesse visto a comunicação; que isso ocorreu porque a
publicação foi feita em legras (sic) pequenas, fora da parte
de publicações legais (Seção de Esportes) em um fim de semana e
sem cabeçalho de identificação do sindicato (...)” (p. 29).
Publicação
em letras miúdas, sem cabeçalho e na seção de esportes, portanto
não na tradicional parte das “publicações legais”. Aqueles
que, eventualmente, furaram o bloqueio e tentaram pagar suas
mensalidades sofreram ainda um desestímulo por parte do sindicato.
Convincente a esse respeito é a transcrição de uma conversa
telefônica entre um trabalhador e um secretário do sindicato no
qual há uma evidente má vontade em que o trabalhador deixe seu
pagamento em dia a fim de poder participar do suposto processo
democrático (pp. 32-33).
Os
pedidos da ação
A ação
civil pública solicita que as eleições do sindicato em 2013, na
qual proliferaram toda a sorte de denúncias, sejam anuladas. Diz a
ação: “Deve ser reputada NULA a eleição promovida no dia
30/08/2013 para a diretoria sindical do sindicato réu e ILEGÍTIMA é
a diretoria que se fez eleger, devendo esse MM. Juízo assim
reconhecê-la e decretá-la, cassando todos os atos porventura
praticados após aquele pleito. Ainda, impõe-se a reparação do mal
causado pelos réus, de forma ampla e a inibição de prática futura
de ilícitos da mesma espécie” (p. 36).
É
claro, entretanto, que o sindicato não é o único responsável por
toda a situação. Há ainda as empresas que patrocinaram o golpe
antidemocrático. Dado o dano moral coletivo causado ao conjunto da
sociedade – “Os ilícitos são gravíssimos, redundando em
prejuízos nefastos para milhares de trabalhadores e toda a sociedade
joinvilense e auxiliando, certamente, na fruição de vultosos lucros
pelas empresas” (p. 39) – é necessário que ele seja reparado. A
ação lembra, por um lado, do fato de as empresas possuírem um
capital significativo e, por outro lado, sua condição ilegal: “O
grande porte econômico das empresas rés é fato notório na cidade
de Joinville. Aos graus
superiores de jurisdição, todavia, cumpre esclarecer que elas são,
há muitas décadas, detentoras do monopólio (sem licitação,
diga-se de passagem) do transporte coletivo de passageiros de
Joinville (...)” (p. 39). Por isso, o Ministério Público sugere
que a indenização ao prejuízo causado pelas empresas seja definido
em dez milhões de reais.
Há
ainda a importante menção a respeito da proteção das testemunhas,
em especial a Sra. Maria, até a época do ajuizamento afastada da
empresa, e que quando de sua readmissão ela não deverá ser
demitida.
A ação
ainda não teve um resultado final.
Escracho quando Moacir Bogo (Gidion) recebe título de Cidadão Honorário |
Democracia
e transporte público
A
ingerência das empresas rés no sindicato de trabalhadores do
transporte é tamanha, contínua e organizada de tal modo que deve
nos levar a perguntar pelas suas motivações mais profundas. Quais
as razões que levam as empresas e sindicato a um acordo tão
uníssono em vista do massacre dos trabalhadores?
A ação
civil pública oferece várias sugestões. Não há dúvida, no
entanto, que a ampliação da margem de lucro seja o objetivo
primário – a comparação com Florianópolis é eloqüente a esse
respeito. A desorganização e desmobilização deliberadamente
produzidas pelo sindicato são altamente benéficas a fim de que os
trabalhadores tenham seus direitos e vantagens reduzidos em favor dos
dividendos das empresas. Como é claro ao longo da ação, as
empresas não apenas reprimem – embora seja essa sua tática
prioritária –, mas também cooptam, chamam para si trabalhadores
com eventual potencial de organização para cargos diretivos. Nesse
sentido, o atual sindicato nada mais é do que uma espécie de casta
de ex-trabalhadores que guarda pouca ou nenhuma semelhança com o
restante da categoria profissional. A atuação coordenada junto à
direção da empresa os transmutou em fiéis guardiões dos patrões.
Do ponto
de vista dos usuários de transporte, no entanto, qual o significado
e importância dessa ação civil pública? Na verdade, toda a
importância. A necessidade de unificar os interesses entre
trabalhadores e usuários é uma questão de longa data no interior
dos movimentos sociais que lutam contra os aumentos de tarifa e
transporte público, os quais ganharam bastante notoriedade desde
junho de 2013 – muito embora sejam bem mais antigos do que essa
periodização possa supor.
Em
Joinville, quando da primeira audiência a respeito da licitação do
transporte, em 30 de janeiro de 2012, a Frente de Luta pelo
Transporte Público lançou um manifesto com vários pontos a fim de
balizar a discussão em torno da modificação do transporte. Desde
aquela época – e nesse ponto Udo Döhler e Carlito não apresentam
quaisquer diferenças – a iniciativa do poder público caminhava na
manutenção do transporte privado, custeado por tarifa individual,
de baixa qualidade e salários e condições de trabalho aviltantes
aos funcionários. Além de a FLTP propor mudanças substantivas no
modo de arrecadação a fim de custear o transporte (priorizando
impostos progressivos e, eventualmente, uma mensalidade), um dos
pontos buscava contemplar a questão da organização sindical.
Explicitamente a FLTP reivindicava liberdade de organização para os
trabalhadores das empresas de transporte. É evidente, porém, que a
luta é muito mais antiga e essa menção é apenas ilustrativa, mas
demonstra a disposição de que trabalhadores e usuários devem se
somar a fim de terem mais força política. Diante disso, a ligação
entre os usuários de transporte e os trabalhadores deve ser
efetivada. A condição para isso é a continuidade do processo de
autoorganização dos trabalhadores do transporte – como a própria
ação civil diz, numa quase
organização de “guerrilha”, clandestina e cuidadosa – somada
às iniciativas do movimento social por redução de tarifas e por
transporte público com tarifa zero.
A ação
civil pública da Procuradoria do Trabalho é uma contribuição
fundamental não apenas para a discussão localizada do problema de
trabalhadores de uma determinada empresa. Na verdade, essa ação
civil pública proporciona o ensejo de discussão a respeito do
modelo de transporte coletivo que desejamos, pois, como bem argumenta
a ação, o atual modelo significa níveis de exploração desmedidos
dos trabalhadores e falta de liberdade sindical. A transformação
necessária é mais crucial: é necessário superar o modelo privado
que, por se apoiar na lógica do lucro, tem como seu corolário a
destruição da organização verdadeiramente sindical dos
trabalhadores. E, com isso, o debate avança para o modelo de
sociedade que efetivamente construímos, se apoiado na negação de
direitos elementares aos trabalhadores cidadãos ou não. Nesse
sentido, a ação civil pública 0001338-13.2013.5.12.0028 presta
serviço e confere honra à luta de todos aqueles que não se
conformam com a arbitrariedade do poder econômico de duas empresas
e seu braço sindical sobre a maioria da sociedade joinvilense. Por
isso é possível dizer que essa ação civil pública é mais um
passo na longa caminhada por uma vida sem catracas.
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