Classes em ação
Seja lá o que for, as classes só podem ser definidas em sua ação. Um amontoado de pessoas não constitui uma classe, mas sim um processo subjetivo e objetivo, não-linear e complexo de agrupamento, conformação social e organização política. A idéia de “classificação” não combina com a análise de classes.
A ação ou movimento das classes é, via de regra, a luta. O momento da luta é o momento de maior nitidez das classes, onde elas aparecem de maneira explícita em sua face e interesses. Nos momentos de “paz” temos de ser pacientes e, como em uma passagem na neblina, “levar o barco devagar”[1].
A situação insólita
Em Joinville, para irmos direto à coisa, foram criados corredores de ônibus nas ruas João Colin e Blumenau (a ser concluído até dia 16 de julho)[2]. A repercussão foi midiaticamente significativa e levou à cena pública como atores principais de uma polêmica a Prefeitura e Empresas de Transporte versus Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL)[3]. A idéia dos corredores é antiga[4], mas, conforme observou um jornalista atento, é implantada por “coincidência” em ano eleitoral[5].
O posicionamento dos agentes até agora discriminados pode ser esboçado da seguinte maneira: de um lado, as Empresas e a Prefeitura, reclamando-se portadoras do interesse da população, da mobilidade urbana, acusando a CDL de corporativismo; de outro, a CDL, representante do interesse do emprego, da economia local, contra a Prefeitura, acusando-a de autoritarismo.
A CDL, por sua vez, preparava uma manifestação pública, com previsão de fechamento de rua, cuja palavra de ordem era “Não ao corredor de ônibus” – manifestação essa abortada. Efetivamente, encaminhará estudos jurídicos que permitam a reversão dos corredores e uma audiência pública. É fácil notar uma mudança, ou no mínimo uma oscilação, do discurso dos dirigentes da CDL que de mérito – o desemprego que em tese os corredores vão provocar com a redução do movimento do comércio – passaram a criticar a forma[6] – a antidemocracia do prefeito.
A tragédia da CDL é que, simplesmente, seus interesses não são universalizáveis e sequer podem se apresentar assim. Os corredores apresentam uma melhora efetiva no tempo consumido pelos usuários de ônibus para seu deslocamento e esses usuários são a maioria da população – ainda que agentes desorganizados. Como se não bastasse, a CDL, representante da pequena-burguesia joinvilense, é incapaz de superar suas limitações de classe e avançar na luta política para além de uma mera denúncia ou ação jurídica. Salvo melhor juízo, está de antemão derrotada.
As empresas e Prefeitura, que podem ser encaradas, para além desse evento particular, como um bloco só, apresentam sua proposta de corredores, já implantada, como praticamente superior na resolução dos problemas de trânsito, no mínimo em curto prazo. As vias livres vão permitir uma melhora no tempo de viagem dos usuários de ônibus, além de servirem como corredores para ambulância e polícia. Ou seja, coincidem com o interesse público. Entretanto, há mais interesses que isso, e, como lembra Sérgio Gollnick, à redução de tempo e estresse do usuário será reunida uma terceira redução, a de custos operacionais às empresas de transporte que não incidirá sobre uma improvável diminuição de tarifa, “mas sim num breve aumento da margem dos operadores”[7].
Qual dessas posições é autenticamente a posição popular ou a “menos pior”? A uma pergunta ingênua, cabe a resposta, dada em uma situação diversa, de um socialista soviético: Ambas são as piores.
O bom mau-exemplo: Curitiba
Curitiba, para além da apologética pela qual tem seu sistema de transporte freqüentemente lembrado, apresenta um caso interessante que pode ajudar na compreensão dos interesses em torno dos corredores de ônibus em Joinville. Os corredores de ônibus foram implantados na gestão de Jaime Lerner, prefeito biônico indicado pela ditadura militar. O modelo urbanístico aplicado por Lerner privilegiava alguns eixos de desenvolvimento em detrimento de outros. Era o caso de planejar uma cidade cuja característica se mostraria como a exclusão do direito efetivo à cidade.
Até aí nada que se mostre diferente das cidades brasileiras. O cerne da questão consiste em que o modelo urbanístico de Lerner privilegiou a construção de grandiosos corredores de ônibus e esse era o projeto – autêntico – do que podemos chamar de grande burguesia. Ao invés da especulação imobiliária local e comerciantes, Curitiba foi planejada sob a égide dos grandes industriais que tinham em importância os ônibus, a mobilidade de milhares de trabalhadores/as, como mobilidade de mão-de-obra. Quer dizer, o transporte possuía, ao invés do papel prioritário de servir ao comércio local ou, em uma condição ideal, ao direito à cidade, o propósito de servir como deslocamento de trabalhadores/as para seus empregos. Nesse contexto, os ônibus se mostravam o meio mais competente para a execução dessa tarefa – ou seja, nada que ver com um sentido do público presente em germe no modelo lernista de cidade[8].
A lição básica é que entre a grande burguesia e a pequena-burguesia não há confluência automática de interesses. Ao contrário, no local, os choques podem ser freqüentes e são vários os políticos cuja representação gira em torno desses setores[9]. Disso é possível pensar o porquê que ambas as propostas, no que refere à Joinville, são piores.
Uma insólita, indesejável e nociva confluência de interesses
A um primeiro olhar, imaginando uma ação de qualquer movimento que se paute em razão do transporte coletivo e sua desmercantilização, a posição da Prefeitura/Empresas parece a mais adequada: faz pouco caso dos interesses particulares da pequena-burguesia, contribui com o primado do ônibus sobre o carro e aplica uma política de benefício ao usuário. Todavia, os corredores de ônibus são rigorosamente consoantes à manutenção do poder político local, na medida em que servem para o fôlego e sobrevida para a tarifa de ônibus ao “módico” preço de R$2,05 antecipada e R$2,50 embarcada. Além disso, como já dito, os corredores não se traduzem, imediatamente, como uma política popular; vale lembrar, o deslocamento de pessoas, sob o regime do lucro e da exploração, não é necessariamente “progressista”. Evidente, porém, que os corredores são uma proposta anos-luz mais avançada que as idéias da CDL. Disso não resulta, contudo, uma adesão ao programa dos empresários, mas sim o apoio ao que é melhor, não se esquecendo do abismo que separa o programa do MPL do programa dos empresários.
Portanto, ao MPL Joinville não cabe a confluência de interesses com a Prefeitura/Empresas. A posição possível é aquela que sustente a independência e crítica ao modelo que continua a vigorar na gestão do transporte. Não cabe, tampouco, fazer eco à democracia de conveniência da CDL, proposta quando a ela interessa.
Ambos atores, Empresas/Prefeitura e CDL, pretendem galvanizar a população ao seu projeto. O vácuo sempre sugere um lado. Isto é, sem a apresentação de um projeto alternativo a tendência é as pessoas aderirem ao que lhes dará maior conforto em suas viagens.
A hegemonia se constrói pautando-se continuamente na sociedade, lutando pelo direito à fala, constituindo-se como agente, passando do estágio de conformação social para o estágio da organização política da classe. Se à briga desses dois atores, cuja divergência é menor do que as páginas dos jornais estão dispostas a admitir, não se somar outro ator, corre-se o risco de fazer do Movimento Popular um coadjuvante da História. Ao MPL resta, com sua ousadia costumeira, ser a terceira voz.
[1] Aproveito-me da idéia de Francisco de Oliveira, por sua vez se inspirada em Paulinho da Viola, em Oliveira, F., Genoíno, J. e Stédile, J. P. Classes Sociais em Mudança e a luta pelo Socialismo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2000, Série “Socialismo em Discussão”.
[2] Para ficarmos apenas com a notícia, conferir o Jornal A Notícia (AN) do dia 4 de julho de 2008, coluna de Jefferson Saavedra.
[3] Para o relato do combate que se armava, ver o AN de 9 de julho de 2008.
[4] Alertei aos companheiros do Movimento Passe Livre Joinville, no dia 22 de fevereiro de 2008, via lista de e-mail, sobre a existência de um livreto institucional das empresas Gidion e Transtusa cuja publicação data de 1988, salvo engano, no qual é claramente proposta a idéia dos corredores. No mínimo, para nos mantermos no nível mais raso da pesquisa histórica, a proposta dos corredores data desse ano, 20 anos, portanto. A quem interessar possa, o livreto se encontra na biblioteca da UNIVILLE e sua referência é 338.4098164 E82e REF.
[5] “Coincidências” em Blog do Camasão, http://blogdocamasao.blogspot.com/2008/07/coincidncias.html, acesso em 13 de julho de 2008.
[6] “Desde que nos posicionamos contra, não fomos mais ouvidos”, José Manoel Ramos, Jornal Notícias do Dia (JND), dos dias 12 e 13 de julho de 2008, p. 5.
[7] “Goela abaixo”, JND, dos dias 12 e 13 de julho de 2008, p. 3.
[8] Em breve, o Movimento Passe Livre de Curitiba irá publicar o texto História do Transporte em Curitiba em www.fureotubo.blogspot.com . Haverá maiores detalhes sobre a política urbana de Jaime Lerner e a idéia de “cidade-modelo” será desmistificada.
[9] Exceto Darci de Matos, segundo a edição de 13 de julho do AN, os demais prefeituráveis são contrários aos corredores de ônibus. No entanto, ao que tudo indica, são contra por mero oportunismo. Ou se remetem à forma ou assumem explicitamente os interesses da pequena-burguesia. São completamente incapazes de apresentar uma proposta alternativa. Penso que mais do que investigar as “linhas de força” entre classe e representação, cabe mais observar diretamente os atores envolvidos e suas entidades políticas. A análise sobre os prefeituráveis, nesse caso, é pouco produtiva.
A disputa pela prefeitura de Joinville tem se caracterizado pelo vazio de idéias e pela completa falta de audácia política no que se refere ao transporte – para ficarmos com o mínimo. Vale notar, por justiça, que no AN não consta a posição dos prefeituráveis do PSOL e do PSTU em relação aos corredores.
Por Hernandez Vivan Eichenberger
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